Porque dois chocolates feitos com o mesmo cacau não vão ser iguais

Eu vivo escrevendo sobre chocolates bean to bar, chocolates de origem e de 2 ou 3 ingredientes, falando que o cacau de diferentes origens tem sabores e aromas diferentes porque as condições de clima, de solo, de vegetação ao redor da plantação (ou seja, o terroir) e também a variedade do cacau influenciam o sabor. Aí você pode pensar que dois chocolates feitos por fabricantes diferentes com cacau da mesma fazenda vão sair iguais. E o fato é que geralmente isso não acontece.

Por isso, você pode provar um chocolate feito com cacau de Chuao na Venezuela, por exemplo, e adorar, e depois provar outro que não te agrade tanto assim. Isso porque cada chocolate maker tem a sua receita! Mesmo que os ingredientes sejam os mesmos, as receitas podem não ser.

 

Amano - Chuao Village 70% cacau
Chocolat Bonnat - cacau Chuao
François Pralus - cacau Chuao

Mesma origem de cacau, 3 receitas diferentes, 3 resultados diferentes.

 

A torra dos grãos

Quem faz chocolate bean to bar compra “beans” ou seja, grãos de cacau. Os cacaus, após a colheita e ainda na fazenda, são abertos e os grãos envolvidos na polpa são retirados da casca e colocados para fermentar por 5 ou 6 dias. O resultado são grãos molhados que são colocados para secar, geralmente no sol. Só depois de secos é que eles saem das fazendas.

fermentação de cacau Fazenda Vale Potumuju
fermentação dos grãos de cacau

secagem do cacau na barcaça Fazenda Sagarana
secagem dos grãos de cacau

 

Então, os chocolate makers compram estes grãos, que precisam ser torrados. Esta torra é o passo seguinte para o desenvolvimento do sabor do chocolate (tanto a fermentação quanto a secagem também influenciam). Dependendo da temperatura e do tempo de torra, tem-se um resultado de sabor.

Imagina um bife crú, um mal passado, outro ao ponto e outro bem passado. O sabor deles é diferente, certo? E a cor também, claro. O mesmo acontece com o sabor e a cor do cacau ao ser torrado. É uma reação que transforma quimicamente os componentes do alimento e consequentemente altera suas características (é a chamada “Reação de Maillard). No caso do cacau, a torra é responsável por reduzir a quantidade de ácido acético e de taninos nos grãos, criando sabores mais complexos. Dependendo de como é feita essa torra, os grãos podem ter diferentes níveis de acidez, adstringência e amargor.

 

Torra do cacau na Mestiço Chocolates

resfriamento dos grãos após torra

Existem também alguns fabricantes que preferem não torrar o cacau, como é o caso dos chamados chocolates “crús” ou “virgens”.

A conchagem

Depois da torra, os grãos são quebrados, moídos, recebem outros ingredientes (açúcar, manteiga de cacau, etc), a mistura é refinada e finalmente vem a conchagem. Esta estapa serve para eliminar os ácidos voláteis da massa, arredondar as partículas sólidas e distribuir melhor a manteiga de cacau entre as partículas, o que melhora o sabor e a textura do chocolate. O refino da massa também influi diretamente na textura do chocolate.

Viu quantas oportunidades existem de fazer um chocolate diferente com o mesmo cacau?

A Fresco é uma marca americana que gosta de mostrar estas diferenças. Ela usa os mesmos ingredientes (mesma origem e porcentagem de cacau, mesmo açúcar e manteiga de cacau) e faz chocolates com diferentes níveis de torra e de conchagem. Eu provei o 212 e o 224, feitos com 72% de cacau da República Dominicana e gostei mais do 212, que tem torra leve e conchagem sutil. Sua fórmula consegue mostrar mais notas amendoadas e carameladas e tive a sensação de que ele é ligeiramente menos amargo. Já no 224, que é feito com torra média e conchagem média, senti notas de café e ameixa. Confesso que para mim essas diferenças foram bem sutis, tive que prestar bastante atenção durante a degustação. Talvez se eu tivesse em mãos a versão com torra alta (que não consegui comprar), sentiria a diferença com maior facilidade. Mas acho a experiência super interesante!

 

Fresco 212 e 214 República Dominicana

 

Alguns fabricantes (especialmente no Brasil) não fazem a conchagem e outros não fazem o refino, como a americana Taza que faz seu chocolate propositalmente com textura rústica.

Receitas européias e americanas

Em linhas gerais, pode-se dizer que, em termos de bean to bar artesanal, os americanos são mais puristas que os europeus. Muitas marcas americanas usam apenas 2 ingredientes, cacau e açúcar, podendo até adicionar manteiga de cacau, mas geralmente é bem pouca quantidade. Os europeus preferem seus chocolates mais cremosos, mesmo os intensos (de alto teor de cacau), e por isso suas receitas costumam incluir uma quantidade maior de manteiga de cacau. Dá para sentir que são mais “pesados” e derretem muito mais rápido. Uma das marcas que mais se destaca neste sentido é a francesa Chocolat Bonnat, que capricha na manteiga de cacau. Não tem certo nem errado, não tem melhor ou pior, é uma questão de gosto, de receita. Para mim, os chocolates que tem mais manteiga de cacau passam uma sensação de “conforto”, enquanto que os que tem menos deste ingrediente são mais leves e mais naturais. Tem hora que eu quero um europeu e tem hora que prefiro um americano.

Inclusões

Até aqui falei apenas dos chocolates com 2 ou 3 ingredientes, que geralmente são feitos em tabletes (barras). Agora, imagina as possibilidades quando se trata de incluir mais ingredientes. Leite, por exemplo, que há décadas faz o chocolate mais desejado pela maioria, e também as amêndoas e avelãs. Ou as novas tendências em inclusões, como leite de coco, lavanda, matcha e goji berries. As possibilidades são quase infinitas.

Damson Chocolate - Matcha
chocolate branco com matcha da Damson
Charm School Chocolate - Coconut milk chocolate
chocolate com leite de coco da Charm School

 

Conclusão

Entre variedades, origens e safras de cacau e também receitas de fabricação, existem inúmeras combinações que podem criar chocolates maravilhosos (e outras tantas que criam chocolates ruins!). Ou seja, dá para provar chocolate puro diferente todo dia!

Se formos falar também de chocolates recheados (tipo bombom por exemplo), aí o céu é o limite. Mas lembre-se, sempre consuma com moderação!

A foto em destaque é de parte dos chocolates que estou provando devagarzinho e com moderação.