Bean to bar é um termo que está aparecendo em muitos artigos em sites e revistas impressas. Isso acontece no mundo todo, já há alguns anos, principalmente nos Estados Unidos, e agora ganha força no Brasil.
Uma explicação rápida é:
Bean to bar é o chocolate feito desde os grãos de cacau até a barra de chocolate pela mesma empresa.
A maioria dos chocolates que a gente conhece não é feita assim. Eles são feitos a partir de liquor (ou massa) de cacau, que são os grãos (ou amêndoas de cacau) já torrados, descascados e moídos, ou de um chocolate pronto que é derretido, re-temperado e re-moldado.
MAS NÃO É SÓ ISSO!
Eu já venho falando sobre chocolates bean to bar há anos, já escrevi e gravei vídeo, mas confesso que já fiquei na dúvida de quais são os limites do termo “bean to bar”, pois ele é interpretado de formas diferentes pelo mercado. Depois de conversar com especialistas e chocolate makers estrangeiros e brasileiros e pesquisar bastante, cheguei a algumas conclusões que quero compartilhar com vocês.
Bom, não existe consenso sobre o que exatamente é chocolate bean to bar. A definição implica em diversas interpretações. Vale a pena saber de onde ele vem para entender a polêmica.
Se você está com pressa, vá direto ao texto em verde!
História do termo “bean to bar”
O termo foi inventado no final dos anos 90 pela empresa Scharffen Berger da Califórnia, para identificar um estilo de chocolate que ninguém fazia na época: chocolate artesanal feito desde os grãos de cacau (=from bean) até as barras de chocolate (=to bar).
Naquela época todo chocolate artesanal era feito a partir de outro chocolate, que seria derretido, re-temperado e re-moldado. Ainda é assim na maioria das vezes. Se você já procurou aprender a fazer chocolate, já descobriu que o ingrediente inicial é um chocolate em barras (que deverá ser picado) ou em gotas (que fica mais fácil de trabalhar), raramente o ingrediente inicial é cacau.
O objetivo da Scharffen Berger era fazer um chocolate “from scratch”, escolhendo o cacau e sendo responsável por todas as etapas do processo. Assim eles poderiam escolher um que tivesse melhor sabor, decidir como fazer a torra (que é uma das etapas de desenvolvimento do sabor do chocolate), fazer a moagem como quisessem e depois terminar o processo do jeito tradicional.
Não era fácil fazer isso! Não existia máquina para moer e descascar os grãos de cacau, pelo menos não em escala pequena. E ninguém vendia grãos de cacau em quantidade pequena, apenas em toneladas. Eles então deram um jeito, viajaram para uma origem de cacau para comprar algumas sacas, adaptaram equipamentos e inventaram engenhocas para conseguir a produção artesanal. O resultado? um chocolate que encantou quem provou! Mas para mostrar que era diferente, eles criaram o termo “bean to bar”. Portanto, o termo nasceu para identificar uma produção artesanal e cuidadosa.
Menos de 10 anos depois, a empresa foi comprada pela gigante Hershey’s. Pelo que dizem, por 50 milhões de dólares! E depois de um tempo, foi levada da Califórnia para a Pensilvânia, deixando um vácuo no mercado. Quem estava acostumado a consumir aqueles produtos, não tinha mais a oferta. A demanda existia, então outros empreendedores californianos resolveram abrir suas fábricas de chocolates bean to bar. Assim nasceu o “movimento bean to bar”.
A polêmica
Os chocolates chamados de bean to bar começaram a se multiplicar e a encantar os consumidores. Se você for considerar apenas a tradução do termo bean to bar, que é “do grão à barra”, muitas empresas gigantes produzem chocolates assim. Nada artesanal, mas sim, eles escolhem o cacau (qualquer que seja) e são responsáveis por todo o processo até o final. Exemplos: Hershey’s, Lindt, Callebaut (o chocolate belga presente nas chocolaterías brasileiras), etc. Elas podem usar o termo bean to bar para descrever seus produtos? Aí está a polêmica. Tem gente que diz que sim e gente que diz que não!
E quem compra o cacau, mas não tem o equipamento e usa de outra empresa, é bean to bar ou não? Tem gente que diz que sim e gente que diz que não! E as empresas que começam de forma artesanal e crescem para uma escala mais industrial? Enfim, várias outras dúvidas nesse sentido podem ser levantadas. Seguem os resumos de algumas definições publicadas:
Livro The Chocolate Reference de Georg Bernardini (2015, pg. 100): Bean to bar é chocolate feito por quem compra grãos crus de cacau, faz a torra, a quebra, a moagem e o processamento até o chocolate. É quem tem os equipamentos para fazer ele próprio o processamento dos grãos do início ao fim.
Livro Bean to Bar Chocolate – America’s Craft Chocolate Revolution de Megan Giller do site Chocolate Noise (2017, p. 16): Bean to bar é o chocolate feito desde o começo, geralmente por uma pessoa ou um grupo pequeno de pessoas, que seleciona o cacau, faz a torra, a moagem e o processamento em uma única instalação.
Belgium Bean to Bar Charter (Link indicado pela Dra. Carla Martin do FCCI – Fine Cacao and Chocolate Institute). Na produção de bean to bar é preciso ter controle de todo o processo de produção que deve ser artesanal e transparente . Tentar sempre usar menos açúcar, quanto menos ingredientes, melhor. Sem short-cuts. Conhecer os produtores de cacao e falar deles e dos seus cacaus. Comprar diretamente do produtor. Não machucar seres humanos nem o ambiente. Monitorar o trabalho e o progresso de forma transparente.
A minha conclusão
Para mim a definição de “bean to bar” é como “cinza”. Existe o cinza quase preto, o cinza quase branco e vários tons de cinza intermediários. Existe a definição de bean to bar “simplista”, a definição “purista” e várias interpretações no meio delas.
Chocolate bean to bar é:
Na definição simplista:
- É um método de trabalho;
- A empresa compra os grãos de cacau, faz o processamento ela mesma e vende barras de chocolates ou seus derivados;
- Nada mais é especificado, ou seja, não importa como é feito ou com quais ingredientes e nem qual a intenção (por isso, essa definição não significa grande coisa).
Na definição purista:
- É uma filosofia de trabalho em que o chocolate é feito desde os grãos do cacau até a barra do chocolate, mas com características bem mais detalhadas. É o que eu já chamei em outros posts de “chocolate bean to bar artesanal”;
- Chocolates feitos desde o grão do cacau até a barra do chocolate pela mesma pessoa ou equipe, em um único local;
- Produção artesanal e em pequenos lotes (apesar de ninguém dizer exatamente qual é o limite do tamanho do lote);
- Objetivo de destacar o sabor de um cacau especial (geralmente cacau fino, cacau de origem), que deve ter características interessantes de sabor (que vem tanto da genética quanto do tratamento pós-colheita);
- Ingredientes puros e o teor de cacau é especificado: mais cacau, menos açúcar, nenhuma gordura substituta de manteiga de cacau, nenhum aromatizante (porque aromatizante é usado para alterar o sabor, o que aqui não é desejado nem necessário) ou qualquer outro ingrediente. Por isso, geralmente os chocolates tem apenas 2 ou 3 ingredientes (grãos de cacau, açúcar e, se necessário, manteiga de cacau).
- Relacionamento e valorização da cadeia produtiva. É importante o contato do chocolate maker com o produtor do cacau e, sempre que possível, a compra direta. As 2 primeiras etapas de fabricação do chocolate são feitas na fazenda e são importantíssimas para o sabor do chocolate. Então, para escolher o melhor cacau e entender como seu sabor foi desenvolvido, é necessário ter esse contato e o trabalho do produtor do cacau é valorizado, com pagamento de valores mais altos para cacau melhor produzido.
- Transparência é um fator também importante. Várias marcas publicam relatórios de quanto cacau compram e o preço pago, detalham as informações nas embalagens e sites, além de abrir as fábricas à visitações do público.
- Há uma preocupação com o ser humano e o meio ambiente.
Como você pode ver, estes extremos nas definições podem descrever produtos absolutamente diferentes.
Definições intermediárias
E imagine que tem ainda as interpretações intermediárias. Exemplos: Quem faz quase tudo como purista, mas usa lecitina como emulsificante (o que muitos puristas consideram um facilitador, um atalho, e não gostam, mas poucos makers brasileiros dispensam), quem também faz chocolate ao leite, quem tem a sua linha bean to bar e trabalha em paralelo com uma linha que usa chocolate pronto como ingrediente, quem automatiza toda a produção e cresce bastante … enfim, não é fácil delimitar onde o cinza escuro vira cinza claro.
E porque seria interessante delimitar? Porque hoje em dia muitos consumidores querem:
- consumir produtos mais artesanais, menos processados e com menos ingredientes;
- saber de onde vem os alimentos que vão consumir e seus respectivos ingredientes ;
- saber que as pessoas envolvidas na cadeia produtiva daquele alimento vivem em condições dignas.
Para esses consumidores, os produtos que chegam mais perto da definição purista atendem à essas expectativas.
Eu tive que escolher um limite para o Prêmio Bean to Bar Brasil, para saber quem poderia participar ou não da competição. Nele, aceitei quem usa lecitina (muitos usam) e tenho a categoria “Ao Leite”, mas não aceitei nada de aromatizantes nem baunilha e não é permitido substitutos da manteiga de cacau. É necessário informar a porcentagem, origem do cacau e a maioria dos participantes informa também a safra.
Claro que você, consumidor, não precisa fazer nenhuma destas considerações na escolha da compra, mas pode ser que você queira identificar um chocolate realmente bean to bar artesanal.
Como identificar o chocolate bean to bar artesanal
- Leia a embalagem do chocolate.
- Quem faz bean to bar quer mostrar isso, vai estar escrito. Pode aparecer também como “do grão à barra” e “da amêndoa à barra”.
- Nos ingredientes :
- não deve haver substitutos da manteiga de cacau,
- o açúcar não deve ser o primeiro ingrediente da lista,
- o cacau deve ser o primeiro ingrediente,
- não deve haver aromatizantes (nem naturais nem artificiais),
- não deve haver ingredientes com nomes estranhos (exceto lecitina, caso você não seja um purista).
- A porcentagem e a origem do cacau geralmente estão indicados na embalagem, inclusive em chocolates ao leite e brancos.
- Leia os demais detalhes da embalagem, muitas marcas contam sobre como o chocolate é feito e sua filosofia de trabalho.
- Verifique o site da empresa. Conheça a história da marca e entenda de onde vem seus ingredientes.
- Repare no preço. Chocolate bean to bar costuma ser mais caro, pois o cacau processado de forma apropriada toma mais tempo e esforço dos produtores, tornando-o mais caro. Desconfie de chocolate muito barato.
Bean to bar é garantia de qualidade?
Não necessariamente! Com certeza, a intenção de fazer um bean to bar é um primeiro passo promissor, mas não é uma garantia!
Assim como não ser bean to bar também não é um indicativo de que o chocolate é ruim. Existem muitos chocolates maravilhosos feitos a partir de liquor de cacau ou de um chocolate pronto. Aliás, os principais chefs confeiteiros do mundo usam esses chocolates em suas criações!
São necessárias 2 coisas para fazer um chocolate excelente:
- ingredientes de qualidade (independente do ingrediente ser grãos de cacau, massa de cacau ou um chocolate para ser derretido);
- habilidade técnica + criatividade de quem o faz.
Um chocolate maker (que é quem faz o chocolate a partir dos grãos) precisa saber escolher e trabalhar o cacau. Mas isso não é fácil. Por exemplo, se o maker comprar o cacau e processá-lo de forma artesanal somente com açúcar, mas não tiver habilidade e fizer algo errado (o que é fácil), pode estragar o chocolate. Nesse caso, seria um bean to bar, mas sem qualidade.
Então o termo bean to bar, que era para ser simples, no final ficou complexo!
Fique à vontade de deixar aí nos comentários a sua opinião sobre a definição de chocolate bean to bar!
Deixar um comentário