Publico aqui o texto da Dra Kristy Leissle que é relevante para uma discussão que precisa ser divulgada e ampliada. Trata-se de aspectos sociais da cadeia produtiva do chocolate, em que pairam acusações de trabalho escravo e trabalho infantil na produção de cacau no continente africano. É lá que a maior parte do cacau do mundo é produzida e todos temos consumido chocolates feitos com esse cacau, agora ou no passado recente.

Quem é a Dra Kristy Leissle


Dra. Kristy Leissle

A Dra. Kristy Leissle é o autora do livro Cocoa, sobre a cadeia produtiva do cacau e do chocolate (disponível aqui).

Desde 2004 ela pesquisa e escreve sobre a política, a economia e a cultura que envolve a produção e o comércio de cacau e chocolate na África, Europa e América do norte. Ela é a criadora da série “I am a cocoa farmer”, para a  ConfectioneryNews, que traça o perfil de mulheres e homens africanos que cultivam cacau. Ela também publica regularmente em periódicos acadêmicos, jornais e revistas. É cofundadora do Cocoapreneurship Institute of Gana, junto com Moutia Murheb, para apoiar empreendedores que trabalham em qualquer estágio da cadeia de valor do cacau na África Ocidental.

Ela mora em Acra, capital de Gana, o segundo país do mundo em produção de cacau.

O que está acontecendo no mundo do cacau

Há anos lemos matérias e assistimos documentários que relatam as condições de trabalho abusivas na produção de cacau em países da África, especialmente Gana e Costa do Marfim, inclusive com casos de trabalho infantil de alto risco fazendo parte da cadeia produtiva do chocolate.

Por anos tramitava na justiça americana um processo contra as empresas multinacionais fabricantes de chocolates que compram o cacau produzido na Costa do Marfim, movido por 6 crianças que foram levadas de Mali para a Costa do Marfim para trabalhar em regime escravo no cultivo de cacau. Em 17 de junho de 2021, a Suprema Corte americana decidiu que as empresas Nestlé e Cargil não podem ser responsabilizadas por aquela situação, o que gerou uma onda de protestos virtuais de pessoas chamando consumidores para o boicote  de tais marcas.

O texto abaixo, traduzido por mim, é uma resposta da dra Kristy Leissle a estes protestos e é bastante relevante porque ela mora e trabalha em Gana, acompanha de perto a situação daqueles produtores de cacau e compartilha seu testemunho do que acontece lá.

Entendo o ponto de vista dela e acredito que eventual boicote pode mesmo, de alguma forma, ser prejudicial aos produtores de cacau, mas fico imaginando o que nós, do outro lado do mundo podemos fazer. Penso em conscientização do público em geral. Alguém um dia pode chegar em posições que tenham poder de mudança. Então o que proponho é que esse assunto seja mais divulgado e discutido, a fim de que alcance mais pessoas, surjam mais ideias e acabe em algum momento ajudando de fato quem realmente produz o cacau que grande parte de nós consome em forma de chocolate. Esse é o objetivo deste post.

Originalmente recebi este texto na newsletter da Megan Giller, do site Chocolate Noise (também autora do livro Bean-to-Bar Chocolate: America’s Craft Chocolate Revolution, disponível aqui), falei com ela, que gentilmente me colocou em contato com a dra. Leissle e ela me autorizou a traduzir e publicar seu texto aqui. Agradeço imensamente a ambas ! Thank you so much, Megan and Kristy!

Crédito das fotos: todas do site Doc of Choc, da dra. Kristy Leissle

Texto da Dra. Kristy Leissle do www.docofchoc.com, traduzido

Nota: Ela fala de “farmers” que na tradução ao pé da letra seria “fazendeiros”, mas pode ser também interpretado como “agricultores” ou “produtores de cacau”, que me parecem termos mais precisos.

[Clique aqui para ler o original em inglês no site Doc of Choc]

Boicote multinacionais, puna os fazendeiros

Se alguma emoção me motivar a escrever o Chocolate Bar None [o blog no site dela], espero que seja compaixão pelas pessoas vulneráveis ​​que trabalham com o cacau da África Ocidental. Mas nas últimas semanas, me senti mais compelida pela frustração a escrever este post em particular.

Meu impulso foi a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de que fabricantes e processadores multinacionais de chocolate, incluindo Nestlé e Cargill, não poderiam ser responsabilizados por supostos casos de escravidão infantil em suas cadeias de abastecimento.

Alguns leitores podem ficar surpresos que minha frustração não foi com o veredicto. Em vez disso, me senti bastante provocada pela maneira como certos blogueiros, tweeters e jornalistas escreveram sobre esse veredito. (Para um breve relato da decisão do Tribunal, sem sensacionalismo, consulte este artigo da ConfectioneryNews.)

Agradeço à minha amiga Megan Giller, do Chocolate Noise, por me indicar alguns dos posts mais notórios. Megan sabia que eu compartilharia sua preocupação sobre a maneira como alguns escritores descreveram a África Ocidental e seus apelos aos boicotes.

Alegações do mal

Mais de uma vez, li que se eu estivesse interessada em promover a justiça comercial, incluindo a redução do trabalho infantil, deveria punir as multinacionais no processo fracassado, boicotando-as.

Eu aprendi também que as pessoas que dirigem as multinacionais de chocolate são o mal em busca de lucro, que não se importam se as crianças são escravizadas para cultivar grãos de cacau. Se eu ousasse comprar dessas marcas, a implicação era que eu também era má.

Talvez as pessoas que dirigem a Nestlé ou a Cargill tenham tomado decisões que exacerbaram o sofrimento entre os produtores de cacau na África Ocidental. Talvez eles tenham tomado outras decisões que levaram a resultados saudáveis.

Apesar de tudo, reduzi-los a malfeitores é imaturo e desinformado. É uma escrita sensacionalista, destinada a fazer os leitores sentirem que, sem nenhum esforço além de apertar um botão “curtir”, eles se juntaram ao lado “certo”.

Acusações do mal não ensinam nada. Você não sairá mais informado sobre o contexto, a realidade ou a mecânica do comércio do cacau.

Boicotes multinacionais: quem realmente sofre?

Deixe-me compartilhar uma vinheta de meu trabalho de campo em Gana. Veremos o que você pensa sobre boicotes depois de ler isso.

O pai de Kweku lhe ensinou a cultivar, e ele sabia desde a infância que queria trabalhar com cacau. Embora fosse um agricultor talentoso, ele não possuía terras. Então ele começou cultivando terras de outras pessoas por uma parte dos lucros. Em outras palavras, um meeiro.

Com o tempo, Kweku firmou um contrato “abunu”. Embora o “abunu” não confira propriedade da terra, dá ao inquilino o direito de cultivar terras e reter todos os rendimentos. Os inquilinos da “abunu” também podem passar esse direito de cultivo para seus filhos. É uma opção atraente e muitas pessoas aspiram por isso.

Uma vida mudou para melhor

Na meia-idade, Kweku estava cultivando vários lotes como meeiro e inquilino “abunu”. Ele havia trabalhado muito, prosperado e elevado o status socioeconômico de sua grande e afetuosa família.

Uma importante ONG iniciou um projeto em sua comunidade. De seus treinamentos, Kweku melhorou a qualidade de seu cacau. Ele também aprendeu que o que ele fez em sua fazenda impactou o chocolate feito com seus grãos.

Perceber que ele desempenhava um papel importante no sistema maior de chocolate comoveu Kweku profundamente. Ele começou, por iniciativa própria e sem compensação, a ensinar outros agricultores a melhorar suas práticas pós-colheita.

Você, um leitor que provavelmente está interessado em elevar a situação dos agricultores, se sentiria bem em comprar chocolate feito com cacau que Kweku plantou?

Se a resposta for sim, encontre algum chocolate feito com cacau processado pela Cargill. Porque é para lá que seu cacau foi. Para a Cargill. Uma das empresas citada no caso da Suprema Corte que todos nós, segundo alguns, deveríamos supostamente estar boicotando.

Boicote a Cargill e você boicota Kweku. Por que você não tenta? Tenho certeza de que Kweku vai agradecer.

Um ser humano na vida real – Kweku – que seria punido pelo boicote a multinacionais. (c) Kristy Leissle

As certificações não dizem nada sobre os indivíduos

Aqui está outra história verdadeira.

Kwadwo era um líder proeminente e respeitado de uma cooperativa de cacau certificada pelo Fairtrade [Comércio Justo]. Sua posição eleita no conselho administrativo da comunidade lhe deu o direito de  dizer como sua aldeia gastaria o dinheiro do prêmio do Fairtrade.

Kwadwo também supervisionou os direitos trabalhistas entre os membros da comunidade. Isso incluiu garantir condições de trabalho seguras para crianças e adultos.

Porque ele vendeu para uma cooperativa que tinha Fairtrade e outras certificações, seu cacau acabou em marcas premium. Alguns deles são amplamente promovidos como “seguros”, de uma perspectiva ética. Livre, de alguma forma, do “mal”.

Tive a oportunidade de me encontrar com Kwadwo em um ambiente de pesquisa. Depois do grupo focal, distribuí refrescos, como sempre faço durante o trabalho de campo nas comunidades rurais. Abri o porta-malas do meu carro para pegar algumas bebidas. Quando me virei, vi Kwadwo dar um empurrão violento em uma mulher em minha direção.

Sua intenção era clara: ela estava coletando bebidas em seu nome e ele queria que ela fosse a primeira a recebê-los. Ele queria suas bebidas imediatamente, ou o máximo de bebidas, ou o que fosse. Ele sentiu que poderia usar a força física em uma mulher para conseguir isso.

A mulher parecia zangada e derrotada pelo empurrão. Senti que incidentes semelhantes já haviam acontecido antes e provavelmente aconteceriam novamente.

A violência doméstica é generalizada em Gana. Como em muitos outros lugares, nem sempre é considerado inaceitável. Talvez outros membros da comunidade de Kwadwo o tenham visto empurrando uma mulher como um comportamento “aceitável”. Talvez eles não o fizessem e sentissem repulsa por isso.

Eu não aceito isso. Eu me sentiria mal sabendo que tinha comido chocolate feito com cacau cultivado por um agressor doméstico.

Roleta das marcas

Meu objetivo ao compartilhar essas histórias é para ilustrar que saber qual empresa fez sua barra de chocolate não diz nada sobre os fazendeiros que cultivaram o cacau.

Ambas as histórias são verdadeiras. Os únicos detalhes que mudei foram os nomes dos fazendeiros. Mas eu poderia facilmente ter compartilhado histórias em circunstâncias opostas.

Poderia ter sido um agricultor honesto e amoroso que vendeu para uma cooperativa certificada como Fairtrade.

Da mesma forma, poderia ter sido um agricultor que demonstrou um comportamento desprezível cujo cacau acabou com uma multinacional.

Não importa que tipo de pessoa um fazendeiro seja, o cacau dele pode acabar em qualquer lugar. Em qualquer barra, qualquer marca, seja ela nomeada em ações judiciais de escravidão infantil ou exibindo todos os certificados em oferta.

Essa verdade está no cerne da minha decisão de comprar e comer qualquer chocolate. É também por isso que nunca vou culpá-lo por escolher apenas comprar chocolate certificado ou artesanal. Para mim, as chances parecem muito parecidas de que ambos estejamos contribuindo para o sustento de pessoas honestas. Pessoas – agricultores – que precisam de nós para continuar apoiando seu trabalho árduo.

 

Os boicotes não ajudam os agricultores – eles os ignoram

Quando os escritores defendem boicotes a fabricantes multinacionais de chocolate, eles deixam de fora a parte mais importante da história: os seres humanos.

Mulheres e homens da vida real que trabalham duro para cultivar cacau – a maioria dos quais acaba em empresas multinacionais de chocolate.

Quando as pessoas pedem boicotes, elas estão essencialmente dizendo que a única coisa que importa é punir as pessoas “do topo” por supostos comportamentos nefastos. Ninguém parece pensar nas pessoas que estão por baixo, que sofrerão como resultado.

Só porque você está bravo com a Nestlé, isso não lhe dá o direito de punir seres humanos que você nunca conheceu, que trabalham duro e cuja situação você provavelmente não consegue entender.

Com base em minhas experiências na África Ocidental, muitos agricultores aqui agradecem que as multinacionais comprem tanto de seu cacau. Eles reconhecem os problemas com o comércio global do cacau da mesma forma que você e, com toda a probabilidade, melhor. No entanto, nenhum agricultor jamais me disse que gostaria que a Nestlé ou a Cargill parassem de comprar deles.

Não é suficiente dizer às pessoas para comprarem chocolate certificado ou artesanal como um substituto. Não é o suficiente. Esses mercados são minúsculos e, para ser franca, essas empresas nunca terão o mesmo poder de compra das multinacionais. Esta não é uma declaração derrotista. É realista.

Se você realmente se importasse com os produtores de cacau, por que viraria as costas para milhões deles na África Ocidental? Por que você não encontraria uma maneira mais inteligente de defender a mudança?

Minha própria função, a meu ver, é compartilhar as verdades que presencio, não importa o quão pouco as pessoas queiram aceitar essas verdades.

Estou fazendo o meu melhor nisso. Eu espero o mesmo de você.

Antes de eu terminar essa tradução, vi que ela publicou outro post no blog dela, com uma entrevista que ela fez com um produtor de cacau de Gana e como ele se sente com relação às multinacionais e o poder de compra delas. Leia em : “It is an answered prayer”: A Ghanaian cocoa farmer speaks about multinational purchasing power

No Brasil

Com relação ao Brasil, até agora não vi aqui qualquer movimento explícito clamando pelo boicote das grandes marcas devido às acusações de trabalho infantil na África. Entretanto, quem conhece o mercado bean to bar (que ainda é minúsculo) acaba de certa forma deixando de consumir chocolates industrializados. Até onde eu sei, a imensa maioria dos produtores de cacau brasileiros vende toda ou parte das suas safras para as multinacionais, ou seja, um eventual boicote também os afetaria fortemente.

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