O mercado dos chocolates está mesmo mudando e parte disso é devido às demandas dos consumidores. Uma delas diz respeito à sustentabilidade, que relaciona o desenvolvimento econômico com o social e a proteção ambiental, com objetivo de preservação do planeta e atendimento das necessidades dos seres humanos sem comprometimento das futuras gerações. Em resumo, novos produtos devem ser bons para todo mundo, no curto e no longo prazo, não só para quem os consome.

Criar formas de reduzir ou eliminar desperdícios é um dos caminhos em direção à sustentabilidade. E é nessa pegada que foi lançado o novo chocolate da gigante Cacao Barry, grupo dono da marca Callebaut, que é o famoso “chocolate belga” presente no mercado brasileiro.

A amostra do WholeFruit que provei

Eu não costumo escrever sobre chocolates que são ingredientes, feitos para uso em confeitaria e chocolataria, como é o caso do WholeFruit. Eu não cozinho, não uso esse tipo de produto. Meu foco é falar de chocolate para consumo direto, principalmente os bean to bar artesanais. No entanto, não posso deixar de falar deste lançamento porque está relacionado a 2 tendências interessantes que vemos no mercado como um todo:

  • A busca por sustentabilidade, neste caso em relação a redução de desperdícios;
  • A busca pelo uso da polpa de cacau como ingrediente, neste caso para substituição do açúcar de cana.

A assessoria de imprensa da Barry Callebaut entrou em contato comigo oferecendo me enviar uma amostra. Agradeço a atenção, curti experimentar e resolvi escrever sobre o assunto.

Isso já faz algumas semanas, mas eu quis pesquisar um pouco mais sobre o novo produto para poder entender melhor do que se trata e não apenas repetir o que veio escrito na carta que acompanha o kit. Sim, é um kit que traz não só o chocolate WholeFruit numa embalagem de amostra (sem os dados do rótulo oficial), mas também uma garrafa do Mel de Cacau da marca Dengo (que eu consultei e disse não saber do kit). Entendo que o objetivo de ter esse produto no kit é para que a gente possa perceber que as notas frutadas que sentimos no chocolate tem relação com o mel de cacau. E tem mesmo.

O kit que recebi

Mel de cacau x polpa de cacau: Já perguntei para várias pessoas, tem gente que diz que mel de cacau e polpa são a mesma coisa, mas tem quem os define como diferentes:

  • o mel é aquele líquido que escorre do cacau quando ele é aberto e o que escorre da polpa de cacau quando ela está nos cochos de fermentação (que são furados embaixo para que o mel saia dali).
  • a polpa é aquela parte esbranquiçada e viscosa que recobre as sementes dentro do fruto.

Na prática, me parece que o sabor de mel e de polpa é o mesmo ou muito próximo. O interessante é que, apesar de que até recentemente pouco se ouvia falar sobre esses derivados do cacau , agora está crescendo o número de produtos no mercado feitos a partir de polpa e de mel de cacau, como bebida ou como ingrediente para outras receitas. Recentemente provei um bombom da Chocolat du Jour recheado com caramelo de mel de cacau. Bem bom.

Callebaut e Dengo: Apesar de atuarem no nicho dos chocolates, são duas empresas com produtos, mercados, filosofias e tamanhos diferentes, além da nacionalidade. A Dengo, que é brasileira e atende o mercado nacional, vende direto para o consumidor e a Barry Callebaut, que atende o mercado mundial, vende para chefs, ou seja, o chocolate deles é um ingrediente, não um produto final.  Os chocolates da Dengo são feitos com cacau fino/especial e os da Callebaut são feitos com cacau commodity/comum. Por isso, estranhei o par no kit, mas valeu a experiência sensorial de provar o chocolate e a bebida.

O que é o WholeFruit Evocao

O WholeFruit Evocao é uma inovação*, anunciada como “a mais deliciosa solução para a mudança climática”, pois “a mais efetiva solução para a mudança climática é a prevenção de desperdício de alimentos”. Palavras deles.

É um chocolate feito somente de cacau, usando como agente adoçante a polpa do cacau desidratada. Ela tem que ser desidratada porque a massa do chocolate é gordurosa e não se dá bem com líquidos. O WholeFruit não contém açúcar de cana refinado, nem lecitina e nem baunilha, como a maioria dos chocolates tradicionais do mercado. O objetivo é aproveitar também uma parte do cacau que, segundo eles, costuma ser desperdiçada, a polpa.

* Leia o tópico “Inovação por todo lado”, no fim deste post.


página do site wholefruitchocolate.com (21/11/21)

Atenção! Apesar de que 100% dos ingredientes do WholeFruit vem do cacau, ele NÃO deve ser chamando de chocolate 100% cacau ! Você pode até pensar que esse seria então um chocolate 100% cacau (inicialmente eu pensei!), mas não deve ser chamado assim porque tradicionalmente o 100% cacau não contém açúcar, só contém massa de cacau e, em alguns casos, manteiga de cacau. O WholeFruit tem o açúcar da polpa de cacau, então pode dar confusão se for chamado de 100% cacau. Muitas pessoas que não podem consumir açúcar, como diabéticos, consomem chocolates 100% cacau. Eles não podem consumir o WholeFruit.

Em termos de sustentabilidade, esse chocolate foi criado com o objetivo de reduzir desperdícios, considerando que até hoje somente as sementes do cacau eram usadas para a fabricação do chocolate. Eles estimam que 70% do fruto é normalmente descartado (casca e polpa). Então a ideia é aproveitar nesse chocolate a polpa do cacau, gerando assim mais uma fonte de renda para os produtores de cacau, além de contribuir para a redução das mudanças climáticas.

Na carta que recebi no kit, eles dizem que “a meta é oferecer chocolates 100% sustentáveis até 2025”. Veja a carta aqui e veja também os detalhes para alcançar a meta, que estão no Programa Forever Chocolate Plan. Só faltam 4 anos e vai ser um bom avanço se de fato acontecer.


Dá para girar e dar zoom na embalagem neste link.

Como é o WholeFruit

Eu provei o intenso/amargo e li que vai ter também a versão ao leite. Demorei um tempo para descobrir a % de cacau, que é sempre uma referência para quem conhece chocolate. Não está escrito na embalagem da amostra nem do produto, nem no site do produto, só no site da Cacao Barry : 72% de cacau (que é a massa de cacau).

Ele é um chocolate com acidez alta, quase no limite entre o interessante e exagerado. Eu curto chocolates com algumas notas azedinhas, por isso gostei, mas acho que não é um chocolate para todo momento e nem para todo tipo de consumidor. Ofereci para minha família e não gostaram, acharam extremamente forte e azedo, pois estão acostumados com chocolates mais doces.

Senti as notas frutadas, mais para o lado dos cítricos, claro, como limão e maracujá, sem muita complexidade e com amargor leve que aparece com mais força só no final. Seu derretimento é bom e uniforme, mas bem mais lento do que o dos outros chocolates da marca (porque tem menos manteiga de cacau, obviamente). A textura não é tão fina como os chocolates da linha principal deles, mas não chega a incomodar. A adstringência é baixa e o sabor persiste um tempão na boca, o que é bom.

Sei que os consumidores dos chocolates da Callebaut estão acostumados com chocolates doces, com notas de baunilha, cremosos, com bom derretimento e textura aveludada. E que os chocolatiers tem facilidade de trabalhar com os produtos da marca porque são chocolates estáveis e previsíveis, e, desde que a curva de temperagem seja seguida, não tem erro (pelo menos, foi isso que ouvi de vários chefs). Além da sustentabilidade, o WholeFruit é diferente da linha tradicional da marca, nos quesitos sensorial na boca e valor no bolso. O preço que vi do Wholefruit em 21/11/21 era de R$ 532,99 para o pacote de 2,5kg, enquanto o chocolate amargo Callebaut na mesma loja custa R$ 168,99 com 2 kg.  Ou seja, será que esse produto vai pegar por aqui ? Será que esta nova tecnologia vai realmente se desenvolver a ponto de ter impacto social e ambiental relevante? Só o tempo dirá.

Chocolaterias e confeitarias

Lembrando que esse chocolate não foi feito para ser consumido assim, puro. Ele é um produto destinado a chocolaterias e confeitarias, para ser harmonizado com outros ingredientes nas criações dos chefs e chocolatiers. Não tive oportunidade de provar nenhuma dessas criações, mas isso não é mesmo o meu foco. Também não sei dizer como esse chocolate se comporta em trabalho, como é na temperagem, fluidez, etc, mas o time de chefs no mundo todo que testou e usou o produto é bem exigente, então imagino que seja ótimo trabalhar com ele (veja os chefs aqui).

A Cabosse e a polpa de cacau desidratada

O açúcar usado no WholeFruit é o da polpa de cacau. Ok, ótima ideia, mas como ? De onde ele  vem ?

Na carta que recebi é informado que a Cacao Barry “associou-se” à Cabosse Naturals para a produção de polpa de cacau desidratada. A marca Cabosse Naturals pertence ao grupo da Barry Callebaut, tanto que o site da Cabosse é redirecionado para dentro do site da Barry Callebaut e o contato disponível é da Callebaut. Pelo que informa o site, a produção da polpa acontece no Equador e é um processo que exige rapidez na extração. Faz sentido. Para preservação das características nutricionais e sensoriais da polpa, o cacau deve ser processado em até 5 horas após a colheita. Ela é feita por produtores de cacau que participam do programa Cocoa Horizons e desse processo fazem parte 450 produtores de pequeno porte.

Para quem não sabe, as duas primeiras etapas da produção de chocolate acontecem na fazenda de cacau, a fermentação e a secagem das sementes (que depois da fermentação passam a se chamar grãos ou amêndoas de cacau). Normalmente, o cacau é colhido, quebrado e a casca é descartada na própria área de cultivo, sendo usada como uma forma de adubo orgânico (pelo menos é assim no Brasil e em vários outros lugares que vi em vídeo). Aproveitar as cascas de outra forma pode ser uma boa ideia para a sustentabilidade e é o que a Cabosse Naturals se propõe a fazer.

Já a polpa, quando em excesso, também é descartada, mas nem sempre. Ela é parte essencial para a fermentação das sementes. Na produção de cacau comum (o mais barato), a fermentação é feita rapidamente, então o descarte da polpa é mesmo um desperdício. Já no caso da produção de cacau fino (que é mais valorizado e pode render mais dinheiro para o produtor), a fermentação acontece de 5 a 7 dias e a polpa faz parte do processo de formação das notas de sabor do cacau (e consequentemente, do chocolate), sendo então necessária. Também é nessa etapa que o amargor e a adstringência são reduzidos, com ajuda da polpa. Então, em muitos casos, dizer que a polpa do cacau costuma ser desperdiçada não é um argumento válido.

Imagino que o cacau usado para extração de polpa pela Cabosse Naturals seja de uma variedade rica em polpa (como a CCN51, abundante no Equador) e que o cacau não vá ser usado como cacau fino. Pode ser que eu esteja errada, mas como os processos são segredo industrial, não temos como saber.


página da Cabosse Naturals no site barry-callebbaut.com mostrando os produtos oferecidos

Informações não encontradas ou desencontradas

Pode ser que ainda não deu tempo de colocar todas as informações não sigilosas à disposição ou que tenha alguma confusão na comunicação. Só sei que algumas informações não batem ou não consegui encontrar.

  • O material publicitário indica que o chocolate WholeFruit tem 40% menos açúcar. Mas eu não encontrei a tabela nutricional em nenhum lugar virtual (Pode ser que tenha no pacote do produto, mas não tenho como checar. Quando a encontrar, publico aqui).
  • No site da Cabosse Naturals também se fala muito sobre Upcycling e a certificação referente à redução de desperdício de alimentos, mas não encontrei confirmação dessa certificação (talvez ainda não tenha ocorrido ou o site não tenha sido atualizado, o que é comum acontecer).
  • A Cabosse Naturals oferece 4 produtos derivados do cacau, conforme foto acima: polpa de cacau, suco da fruta cacau, suco concentrado da fruta cacau e casca da fruta cacau (que é diferente da “casca de cacau” que são as cascas dos grãos e que vemos nos chás de cacau). A Barry-Callebaut oferece também os 3 primeiros produtos sob sua marca (será a mesma coisa, com marketing diferente, já que a Cabosse é da Barry Callebaut ?).
  • Não consegui descobrir se o ingrediente usado no WholeFruit é a polpa, o suco, o suco concentrado ou uma mistura deles. Tive dificuldade de achar uma lista de ingredientes em português, oficialmente informada pela empresa. A única que achei é de um revendedor que informa: Massa de cacau e suco desidratado de cacau. Encontrei outra em inglês, como resposta das perguntas frequentes no site wholefruitchocolate.com, válida para as regras americanas: “Unsweetened chocolate, fructose (from cacaofruit pulp), cacaofruit sugar, dry cacaofruit juice concentrate.”. Já na ficha técnica diz: “Cocoa mass, sugars obtained from cacao pulp”.  Como não tive acesso à embalagem original, fiquei sem saber qual a lista oficial de ingredientes desse chocolate válida no Brasil. E não deveria ser igual em todo lugar ? (foto abaixo)
  • A Cabosse Naturals extrai a polpa e faz o que com as sementes que vem com esta polpa, já que ela não produz nada com os grãos ? Devolve para o produtor de cacau vender ? Joga fora ? A informação não está clara para choconerds chatos como eu.
  • A polpa de cacau oxida facilmente, por isso existe a pressa entre a colheita e a extração da polpa. Além disso, a polpa precisa ser desidratada. Não descobri se esse processo exige uso de outros ingredientes ou se é feito somente com a polpa mesmo. A minha dúvida é se existe alguma diferença entre açúcar de cana refinado para esse “açúcar de cacau”.
  • Pelas fotos acima, os produtos da Cabosse parecem líquidos. Mas para usar no chocolate isso não pode ser líquido. Então quem desidrata a polpa, a Cabosse ou a Callebaut ?

Lista de ingredientes em resposta a perguntas frequentes no whoefruitchocolate.com

Enfim, vale a pena voltar ao assunto daqui alguns meses, quem sabe fica a comunicação fica mais clara. Não espero que respondam para mim. As informações devem estar disponíveis para o público.

Não encontrei todas as informações que eu precisava em um único lugar. Os links que pesquisei foram os seguintes:

*Inovação por todo lado

Vale citar que essa “inovação” foi pensada também por outras empresas e não sei dizer quem fez primeiro. Em agosto de 2019 eu provei e postei sobre o chocolate adoçado com mel de cacau feito pela Casa Lasevicius, que é uma marca bean to bar artesanal de São Paulo. Soube também que a Nestlé está produzindo e vendendo chocolate semelhante, o Incoa e o Cocoa Fruit Chocolate, mas isso ainda não chegou no Brasil. E há alguns meses saiu o registro de patente no Brasil para uma formulação de chocolate adoçado com mel de cacau. A patente é de um grupo de professores e alunos da Universidade de São Paulo. Ou seja, são várias iniciativas bem semelhantes ao mesmo tempo. Independente de quem fez primeiro, o importante é que novas tecnologias estão sendo criadas para usar mais partes do cacau. Dependendo de como isso for feito, pode de fato ajudar o planeta e os produtores de cacau em questão.

Conclusão

A Cacao Barry diz isso no site: “Por que chocolate WholeFruit? Os consumidores de hoje, especialmente os Millennials e centennials, expressam uma fome por uma vida holística onde sabor e saúde andam de mãos dadas. Isso redefine todo o significado de indulgência. Devemos oferecer coletivamente produtos que sejam saborosos, bons para eles, bons para o planeta e para as pessoas.” (cacao-barry.com/pt-BR/wholefruit-chocolate-save-date em 21/11/21) .

O WholeFruit é um chocolate com apelo de sustentabilidade em termos de desperdício da fruta, o que acho super válido. Mas é uma pelo fraco no nicho dos chocolates que tem problemas mais antigos e graves precisando de atenção, na parte social e econômica. Lembrando que a produção de cacau, na maior parte dos países produtores, é feita por pequenos agricultores que vivem abaixo da linha de pobreza, exatamente porque recebem pouco pelos grãos de cacau que produzem. O assunto do trabalho infantil no cultivo de cacau, principalmente no continente africano, é recorrente.  Espero estar enganada, mas, apesar da ideia do WholeFruit ser interessante, o potencial de impacto ambiental e social favorável dele não parece grande. Dentro da empresa, ele é apenas um produto (e em breve 2) que usa o açúcar da polpa, é complicado de fazer e caro. Só o tempo vai dizer se isso é realmente viável e sustentável.

Eu acho ótimo quando a indústria em geral cria produtos para atender novas demandas do mercado em relação à sustentabilidade, mas espero também ver resolvidas as velhas demandas que também são urgentes e atingem muito mais gente.

Me conta nos comentários a sua opinião, seja como consumidor ou como chef chocolatier!