• Texto: Juliana Aquino • da Baianí Chocolates, do fazenda Vale Potumuju e da Associação Bean to Bar Brasil

A primeira vez em que escrevi sobre Chocolate Bean to Bar foi para explicar aos meus futuros funcionários na fábrica do que se trataria seu novo trabalho. Desde lá, informações e concepções sobre o conceito já mudaram um tanto e as adaptações trouxeram mais dinamismo ao nosso dia a dia.

*foto em destaque: Secagem de cacau no Vale Potumuju

A reflexão de hoje foi inspirada num pedido de definição do conceito de Chocolate “Tree to Bar”, uma extensão do conceito “Bean to Bar” quando o produtor de chocolate é também proprietário da origem de cacau de onde vem sua principal matéria prima. Durante a composição do texto é que notei o quanto mudamos desde quando comecei a aprender sobre nosso chocolate…

Há menos de 15 anos pouco se sabia sobre o chocolate Bean to Bar brasileiro. Aliás ele era basicamente um tablete de massa de cacau pilada com açúcar e às vezes leite lá no sul da Bahia ou na Ilha do Combú na Amazônia. Mas o “Movimento Bean to Bar” propriamente dito começou na California nos Estados Unidos no final dos anos 90 e nos contagiou por aqui na metade da primeira década dos anos 2000 quando nasceram as marcas CHoKoLaH, de Claudia Shultz e em seguida a AMMA de Diego Badaró e Luiza Olivetto. A partir daí, um boom de marcas vem conquistando as prateleiras de cafés, empórios, lojas on line e supermercados brasileiros além de prêmios e uma qualidade que jamais se imaginou há 10 anos atrás.

Quando primeiro pesquisei sobre o conceito, o Bean to Bar era o chocolate feito na garagem de casa, em máquinas refinadoras artesanais, a partir da amêndoa integral de um pequeno lote de cacau de origem, sem aromatizantes, muito menos gorduras trans ou outros ingredientes artificiais. Desde então, uma das poucas coisas que não mudou é que o produtor de chocolate Bean to Bar tem que contar com o único recurso sensorial do qual ele dispõe que é o cacau de qualidade… O fabricante Bean to Bar usa 2 ou 3 ingredientes quando o chocolate é dos “intensos” (60, 70, 80% cacau etc), mais um ingrediente quando a barra é “ao leite”, e mais alguns ingredientes, geralmente naturais, em barras “de inclusão”, ou seja, chocolate com algum outro adendo que não o cacau, açúcar e manteiga de cacau. Enfim, a lista de ingredientes do chocolate Bean to Bar é pequena, limpa e não precisa da ajuda do dicionário para que você traduza os itens.

Continuando a reflexão… No nosso começo, difícil pela falta total de máquinas, conhecimento e consumidores educados, a importância do “pequeno lote” na definição do conceito Bean to Bar era grande. As quantidades adquiridas eram contadas em quilos ou no máximo em sacas de cacau (de 30 ou 60kg). Chamávamos de micro-lotes porque eram quantidades de cacau colhido no mesmo dia e assim fermentado na mesma semana. À exceção de fazendas gigantes, os produtores conseguiam separar esse cacau em pequenos lotes e assim vende-los para produtores de chocolate Bean to Bar dessa maneira. Mesmo para grandes produtores, a produção de cacau especial não é simples e os resultados nem sempre são satisfatórios depois de todo o processamento da amêndoa. A seleção de um cacau de qualidade, ou seja, aquele cujos ótimos sabores foram desenvolvidos durante uma cuidadosa fermentação, é bem delicada; depende de conhecimento e experiência. Ou seja, era mais fácil de administrar o pequeno lote.

Acontece que um excelente trabalho por parte de órgãos de pesquisa e os próprios produtores de cacau brasileiros, tem elevado imensamente a qualidade tanto do estudo e reconhecimento de terroirs e genética como dos processos de cultivo, colheita e pós colheita do nosso cacau. O Brasil tem talvez o maior património científico sobre genéticas de cacau do mundo e nossos pesquisadores estão à frente de muitos especialistas mundiais no assunto. Genética + Terroir + Processo de Pós Colheita = Aspectos Sensoriais do Cacau. Fórmula simples de aprender. Então, ultimamente, as práticas eficazes para a produção em quantidades bem maiores de cacau têm sido menos difíceis e os blends de micro-lotes têm atingido excelentes resultados quanto ao valor sensorial. A palavra de ordem mudou para toneladas.

vale potumuju cacau

Aliado a isso, empresas grandes têm se interessado cada vez mais por esse conceito mais sedutor de chocolate e estas precisam de quantidades maiores de cacau especial. Quando falo “empresas grandes” me refiro a empresas que já nascem grandes como a Dengo que hoje tem 19 lojas próprias; empresas que já haviam se solidificado com chocolate comercial e hoje lançam sua linha Bean to Bar como é o caso da Cacau Show e a linha “Bendito Cacau”; e também as empresas que começaram pequenas trabalhando com uma saca de cacau e que hoje produz 9 toneladas de chocolate por mês como é o caso da CHoKoLaH.

Outra característica que também mudou foi a ideia de que só as máquinas artesanais produzem o chocolate puro. Já podemos evoluir esse aspecto do Bean to Bar já que muitas empresas tiveram suas vendas aumentadas nesse último ano e continuar fazendo chocolate em máquinas artesanais que produzem apenas 4 kg por lote, é uma opção complexa e trabalhosa. Claro! Continua uma linda opção tão possível quanto adquirir máquinas maiores. Mas, no meu entendimento, não pode invalidar a ideia de que crescer exige o investimento em máquinas que produzam volumes maiores em menos tempo. A qualidade pode mudar? Sim. Mas pode ser tanto para pior como para melhor. Então vamos falar de mais esse movimento no dinamismo do conceito: a qualidade.

No começo, por sabermos que o chocolate Bean to Bar era o mais puro, produzido em pequenas fábricas e quantidades, a bandeira da qualidade vinha junto com a embalagem pra a frente do balcão de venda. Hoje em dia sabemos que chocolate Bean to Bar NÃO é sinônimo de qualidade, não importa o tamanho da fábrica, a quantidade ou a origem do cacau. O processo de produção do chocolate Bean to Bar exige do chocolate maker a dedicação de qualquer chef de cozinha; os que tem uma boa percepção de temperos, tempos e temperaturas, tem excelentes críticas em revistas especializadas, estrelas Michelin etc. Os bons chocolates makers fidelizam consumidores, angariam prêmios nacionais e internacionais, ampliam lojas e multiplicam vendas porque mantêm sua motivação diária baseada na busca pela excelência. Quem não tem a mesma característica acaba por lançar produtos medíocres no mercado pra aproveitar a “modinha” do momento, não importa se suas máquinas são artesanais ou equipamento industrial de peso.

E agora uma última percepção minha que vem também com a coisa do aumento do tamanho das fábricas: a ideia de que todo o processo de fabricação é acompanhado por um só “artesão”. Obviamente que quando os negócios evoluem e os volumes crescem muito, ter UMA pessoa supervisionando todo o processo é utópico, seja ele pra fabricar sabonete, queijos, azeites ou chocolates. O que normalmente acontece nas fábricas é setorizar a produção, segmentando a mentoria em cada fase do processo. No Bean to bar, uma medida tomada pela Dandelion, fábrica Californiana, me pareceu uma das melhores ideias modernas para resolver a manutenção do aspecto artesanal do Bean to Bar. Lá, cada lote de cacau comprado tem um “artesão”/chocolate maker designado para desenvolver a receita do chocolate (desde tempos e temperaturas de torra, passando pelo tempo de refino e conchagem, acabando na temperagem) e acompanhar todo o processo de fabricação do “seu” lote. Sim, “seu”, porque é ele quem assina a embalagem do chocolate daquele lote específico. A Dandelion tem uma produção próxima de 130 toneladas de chocolate no ano. Seria possível ter uma só pessoa responsável por todo esse cacau sem comprometimento na qualidade? Difícil. É preciso ressaltar aqui que fazer chocolate é uma ciência, não é um processo de fabricação mecânico. A descoberta da necessidade de uma receita especial para cada lote de cacau é o que faz do “Bean to Bar” o chocolate mais singular de todos!

Apesar de citar a Dandelion porque é uma medida que pode ser seguida aqui, toda essa minha observação vem da evolução do chocolate Bean to Bar brasileiro. Então, o importante é saber que quem tem o luxo de produzir cacau de qualidade como é o caso do Brasil, é imensamente mais apto à produzir os mais incríveis chocolates do planeta. Penso que a história dos chocolates comerciais mais famosos, mesmo aqueles belgas ou suíços, foi construída em cima do talento em administrar gorduras trans, essências artificiais e estabilizantes nas receitas destes produtos. Aqui nós temos criatividade, talento e muita matéria prima maravilhosa para administrar as melhores receitas processuais de chocolate puro, verdadeiro e de MUITA origem!

Saiba valorizar o chocolate brasileiro porque em breve ele será mundialmente conhecido como o melhor de todos.

Juliana Aquino

Chocolate Maker – Baianí Chocolates
Presidente da Associação Bean to Bar Brasil
Produtora do cacau Vale Potumuju