Esse é um assunto recorrente. Vez ou outra aparecem notícias sobre a perigosa presença de metais pesados em chocolate. Aconteceu novamente recentemente, com a publicação de um artigo da Consumer Reports, que foi referenciado em várias outras publicações no Brasil. Recebi várias mensagens de amigos e seguidores compartilhando essas matérias e também pedindo comentários. Eu já havia pesquisado um pouco o assunto no passado e fui pesquisar novamente.

Eu não sou nutricionista, nem engenheira de alimentos, nem médica, nem pesquisadora científica, então a minha opinião aqui não é técnica, é só mesmo a minha opinião baseada nas coisas que li até o momento na internet (mas eu fuço bastante).

Metais pesados preocupam, sim, porque podem causar vários efeitos no corpo humano, como cancer e problemas de desenvolvimento. Mas assim como eu nunca vi provas dos famosos “benefícios” dos antioxidantes do cacau nos corpos de quem come muito chocolate, ainda não ví provas dos malefícios dos metais pesados do cacau. nestes mesmos corpos. Não ter visto uma prova dessas não significa que o benefício ou o malefício não existam, só significa que ainda não ficamos sabendo. Até lá, continuo dizendo o de sempre: consuma chocolate com moderação!

As minhas conclusões vem dessa rota de pesquisa:

O artigo original da Consumer Reports

Lead and Cadmium Could Be in Your Dark Chocolate “Consumer Reports found dangerous heavy metals in chocolate from Hershey’s, Theo, Trader Joe’s and other popular brands. Here are the ones that had the most, and some that are safer.”

A metodologia dos testes usados no relatório acima estão neste documento. Segue a tabela dos limites:

O documento usado na definição dos limites dos testes é a OEHHA Proposition 65, uma lei que vale apenas para o estado americano da Califórnia. Esse documento cita Safe Harbor Levels:

  • Cancer = No Significant Risk Level (NSRL) – Inhalation: 0.05 µg/day.  (Sem risco para inalação até 0,05 µg/dia, sendo µg o milésimo de um miligrama).
  • Reproductive Toxicity = Maximum Allowable Dose Level (MADL) – Oral: 4.1 µg/day (Dose oral máxima diária  de 4,1µg/dia, ou seja 0,0041mg/dia).

Ele cita também 2 documentos que tratam de toxicidade reprodutiva, esse e esse, que diz “The maximum allowable daily level (MADL) for cadmium exposure by the oral route is 4.1 µg/day. … Exposure at a level 1,000 times greater than the MADL is expected to have no observable effect….”, ou seja, à exposição ao nível mil vezes maior que 4.1 µg/dia é esperado que não tenha efeito notáveis. Esses documentos não falam de cancer, apenas dos estudos dos efeitos do cádmio em reprodução feminina e masculina e no desenvolvimento de fetos. Os testes foram feitos em ratos, tanto para inalação quanto injeção e ingestão oral de cádmio.

Os chocolates citados na matéria não estão à venda no Brasil, exceto o da Lindt.

ATSDR

A Agency for Toxic Substances and Disease Registry (ATSDR) lista os limites de cádmio nesta página. Tres dados chamam a atenção:

  • O limite do FDA para cádmio na água engarrafada é 0.005 mg/L, mas não existe para outros alimentos ou bebidas.
  • World Health Organization (WHO) “Tolerable weekly intake for cadmium at 7 μg/kg/body weight/week” (consumo tolerável para cádmio)
  • Do ATSDR Chronic durational oral minimal risk level (MRL) of 0.1 µg/kg/day of cadmium based on its renal effects.

The Chocolate Life

Dois posts interessantes sobre o assunto no site do Clay Gordon:

Cadmium in chocolate

Post de Keith Ayoob, escrita um ano antes da matéria do Consumer Reports. Ele é nutricionista pediátrico, é autor do site Cut to the Chase Nutrition e pesquisa bastante sobre cacau e chocolate sob o ponto de vista nutricional. Ele consome cacau em pó diariamente e chocolate com frequência. Ele diz “Exposure doesn’t equal toxicity! Humans have been exposed to cadmium since time began.”  Exposição não significa toxicidade. Humanos tem sido expostos a cádmio desde o começo dos tempos.

Muito interessante o post dele, vale a leitura. Destaco 4 coisas:

  • O cacau em pó é a forma que pode conter mais metais pesados, claro, por ser mais concentrado (cacau em pó é o grão de cacau moído e desengordurado).
  • Vários outros alimentos naturais contém cádmio: folhas verdes como espinafre,, grãos integrais, nuts e frutas vermelhas, podendo aparecer também em carnes, peixes e laticínios.
  • Há um estudo que indica que antioxidantes, presentes nesses alimentos e no cacau, reduzem a absorção do cádmio.
  • Ele testou o sangue para cádmio e deu abaixo do limite para adultos não fumantes (sim, o limite para fumantes é bem mais alto, ou seja, se você fuma, deveria se preocupar mais com isso do que com o chocolate.). Depois, na live citada no item abaixo, ele fala das diferenças entre exame de sangue e urina para cádmio.

TheChocolateLife::LIVE – CADMIUM 2.0

Neste post do Clay (dono do The Chocolate Life), tem o vídeo do episódio da live dele com o Keith Ayoob (autor do post citado acima). Sugiro que assista a esse vídeo, mas vou listar aqui alguns comentários deles:

  • Keith nunca soube de alguém que tenha sido afetado por toxicidade de cádmio por alimentação, muito menos por chocolate. Viu apenas casos em proximidade com depósitos de lixos contaminantes.
  • Toxicidade leva em conta o peso da pessoa. A consequência de um composto no corpo humano depende muito da quantidade. O que uma certa quantidade de cádmio (ou qualquer outro composto) faria com um adulto tem uma consequência bem diferente daquela se essa mesma quantidade for dada a uma criança. Ao mesmo tempo, normalmente crianças comem muito menos chocolates com alta porcentagem de cacau.
  • Trigo produzido na Europa contém níveis mais altos de cádmio que cacau, então, para aquela população, o pão seria mais problema do que chocolate.
  • Exame de sangue detectam cádmio se a exposição foi recente. O exame de urina detecta exposição crônica ou o acúmulo de cádmio com o tempo.
  • Vários compostos presentes no alimentos naturais, como fibras por exemplo, inibem a  absorção do cádmio.
  • Por que existe esse interesse em falar de cádmio em chocolate se não existe em outros alimentos cujo consumo é até maior que de chocolate? Talvez por protecionismo, para querer desmerecer o cacau de países de solo vulcânico e das Américas e favorecer o cacau da África (onde os níveis são baixos), que é a base do chocolate produzido pelas grandes indústrias.
  • Não importa o quanto de cádmio você ingere, importa o quanto o seu corpo absorve (especialmente sangue, rins e fígado), o que nunca é a totalidade, e ele pode vir de várias fontes.
  • O relatório do As You Sow sobre metais chumbo e cádmio no chocolate lista vários chocolates e os níveis desses metais para testes em diferentes datas, de 2014 a 2018 (portanto os dados não são recentes). O relatório tem incongruência nos filtros e na ordenação, o que pode atrapalhar a pesquisa ali.

O Clay testou sua urina para cádmio e teve resultados bem abaixo dos limites, mesmo sendo consumidor diário de cacau em pó e de chocolate.

É interessante que ele chama a atenção para o fato de que a grande indústria do chocolate investe pesado em estudos sobre flavonóides em chocolate, mas não investe nada em estudos sobre metais pesados. Ou seja, investe em descobrir se existem benefícios e não investe para saber dos riscos. Eu não esperaria nada diferente vindo dessa indústria.

Craft Chocolate TV

Episódio Is There Cadmium in Your Chocolate? com Greg D’Alessandre (da Dandelion Chocolate)

Vídeo curto e direto, o Greg explica melhor a tal Proposition 65, vale a pena ver.  Ele cita a diferença dos limites da Proposition 65 para os dados da União Europeia, que detalhei mais no item abaixo.

Ele disse que cádmio está mais presente em solos da América do Sul do que na África. Tende a ter mais no Peru, Equador e Colombia. Não significa que não tem em outros lugares e nem que tem em todas as fazendas desses países.

Ele disse também que o cádmio tem efeitos ligados a cancer, especialmente para quem trabalha diretamente com isso, que tem contato por inalação, como na produção de baterias de lítio. Isso já ficou provado por vários estudos. O Greg não achou nenhum estudo relacionado com a ingestão de cádmio, o que não significa que não existe.

Ele dá algumas dicas para produtores de cacau e para chocolate makers. Se você é um deles, sugiro que assista ao vídeo.

Regulamentação na União Europeia

A União Europeia define os limites de cádmio especificamente para cada tipo de produto nesse documento. Para chocolates eles definem o limite máximo entre 0,1 e 0,8 mg/kg, dependendo do tipo de chocolate. Repare que os limites são para o produto pronto, não para o cacau, ou seja, eles consideram que os metais pesados podem vir tanto do cacau quanto de contaminação em qualquer parte do processo.

Ou seja, cada agência avalia de uma forma diferente, com limites diferentes.

Sobre o chumbo

A matéria do Consumer Reports cita também o chumbo como contaminante. Tive ainda mais dificuldade de achar informações a respeito. Sinceramente, a essa altura eu já tinha investido muitas horas de pesquisa em algo que me parece um alarmismo relativo, considerando que chocolate é um alimento que não deve ter grande peso na alimentação, portanto decidi não pesquisar mais.

Sobre o cacau do Brasil

Não é fácil achar informação publicada sobre o assunto em português. A maioria é reprodução das notícias de outros veículos, sem dados específicos do Brasil. Achei apenas esseesse e esse, e eles confirmam a presença de chumbo e cádmio no cacau brasileiro, indicando a necessidade de monitoramento.

Pelo que foi informado neste post no site Fórum do Cacau, escrito em 2018, o CIC (Centro de Inovação do Cacau, em Ilhéus) faz o teste.

Uma das soluções apresentadas em algumas das fontes que li é a de fazer misturas de grãos de cacau de regiões com diferentes níveis chumbo e cádmio, para reduzir a concentração destes metais nos lotes.

Conclusão

A minha conclusão, para o MEU nível consumo de chocolate (que é frequente, mas moderado em quantidade), é que metais pesados são uma preocupação na alimentação em geral, mas tem importância pequena para o chocolate por ele ser uma fração mínima da MINHA dieta.

Se sua dieta inclui muito chocolate, pode ser um motivo de preocupação. Pelo menos, se informe mais a respeito. Por isso eu sempre digo, deguste, não devore chocolates!

Com relação a crianças, sei que eles preferem chocolates ao leite (que tem menos cacau), mas para aqueles pequenos que estão curtindo os chocolates intensos por influência dos pais, vale analisar as informações com mais cuidado e talvez  limitar o consumo desse tipo de chocolate, por via das dúvidas. Eu faria isso se meus filhos fossem pequenos. De qualquer forma, para eles vale a mesma dica: consumo moderado.

Assim como eu não acredito nos benefícios do chocolate para quem o consome com moderação*, que é o meu caso, eu não acredito nos malefícios dele para o mesmo público. (*O tal benefício do chocolate é o antioxidante, mas para que ele faça efeito precisaria consumir muito chocolate, o que faz mal pela presença da gordura, então eu desconsidero completamente os benefícios. Procuro isso em outros alimentos. No chocolate procuro experiência sensorial.)

Chocolate saudável é pouco chocolate, como expliquei nas 9 telas deste post no Instagram.

Metais pesados existem naturalmente no solo e também devido ao uso de agrotóxicos (que no Brasil são usados em quantidade absurda, inclusive alguns que são proibidos em outros países). A gente nunca vai saber se o que estamos comendo tem esses metais ou não, seja no chocolate ou nas verduras e legumes.

Então, consuma chocolate com bastante moderação e seja feliz!